Tais experiências, embora precoces, certamente influenciaram o caminho profissional de Mourão, que não apenas se tornou médico (e escolheu a psiquiatria como especialidade), mas trilhou caminhos pouco ortodoxos dentro do campo, a partir de uma segunda formação, em Antropologia. Após formar-se em medicina na Universidade Federal do Ceará, concluiu estudos na famosa Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris (França).
Parte dessa trajetória pode ser conhecida no livro “Psiquiatria – Outros olhares”, a ser lançado hoje, na Livraria Cultura. Nele, Mourão explora principalmente os laços que unem a psique humana aos diferentes contextos socioculturais nos quais os sujeitos estão inseridos, a partir de uma abordagem denominada etnopsiquiatria.
Segundo o autor do livro, esta corrente não se opõe à tradicional abordagem medicamentosa, mas a complementa.
A etnopsiquiatria (também chamada de psiquiatria social) fundamenta-se no reconhecimento das diferenças entre indivíduos, ao considerar tanto a dimensão psíquica quanto a cultural – nesse último caso, especialmente de aspectos relacionados às relações sociais, de identidade e de situações vividas ao longo da vida.
“Por exemplo, um paciente esquizofrênico do interior do Ceará não adoece do mesmo modo que um esquizofrênico em Tóquio, no Japão, embora a doença tenha um conteúdo genético. Enquanto o segundo pode falar que está sendo perseguido por monstros de jogos eletrônicos, o primeiro pode relatar demônios ou entidades da cultura popular”, explica Mourão “Outra diferença: já tratei padres e freiras com depressão. Eles choram, lamentam, mas nunca falam em suicídio, por conta dos preceitos do catolicismo”, frisa o médico.
Mourão conheceu a etnopsiquiatria na Europa, onde estudou e trabalhou após formar-se em medicina. A primeira experiência foi no Hospital de Saint Luc, da Universidade Católica de Louvain, Bélgica, onde conheceu alternativas de tratamento que substituíam as práticas de uma psiquiatria então fundamentalmente asilar. No lugar de confinamento e eletrochoques, Mourão conheceu uma unidade de psiquiatria integrada a um hospital universitário, além de uma equipe integrada com aquelas de outras especialidades.
Paralelamente, conheceu o trabalho de George Devereux, que ministrava seminários de etnopsiquiatria em Paris. Anteriormente, já havia tido contado com os livros do professor François Laplantine, outro nome relevante na área.
Casos
A fim de tornar o conteúdo mais claro e acessível, Mourão tomou o cuidado de permear o livro com relatos de pacientes atendidos (com os nomes modificados ou suprimidos). Como, por exemplo, o de um jovem da Paraíba, que, aprovado em concurso público, mudou-se para a cidade cearense de Paracuru. “Lá, ele começou a adoecer, não dormia direito, tinha pesadelos e taquicardia. Tudo isso gerou ainda um desgaste na relação com a esposa”, lembra Mourão.
“Ele já tinha procurado um cardiologista e outros especialistas, quando chegou até mim. Em conversa, contou-me que sua família na Paraíba era umbandista, e que, antes de se mudar, ele estava se preparando para ser pai-de-santo. Em Paracuru, ao contrário, era um total desconhecido. Sugeri, então, que ele abrisse seu terreiro na cidade. Os olhos do jovem chega brilharam. Eventualmente, quando montou o espaço, os sintomas desapareceram”, conta o médico.
Segundo Mourão, o relato demonstra a relevância peculiar da religião na vida do povo brasileiro. “A cultura tem ferramentas que, se corretamente utilizadas, ajudam a pessoa a ficar integrada e de bem com ela mesma e com os outros. A religião é uma delas”, comenta o médico.
Em outra passagem, na introdução do livro, o psiquiatra recorda a ocasião em que questionou a ausência de leitos com rede para pacientes nordestinos, no lugar da tradicional cama hospitalar. “No Nordeste, dorme-se muito de rede, ao ponto de alguns pacientes internados ficarem com medo de cair da cama e isso interferir na qualidade do sono. Tanto que vi inúmeras vezes médicos incluirem no prontuário remédios para eles dormirem”, conta. “É um detalhe que revela como a cultura tem a ver com a dimensão emocional”, complementa.
Compilação
Outro capítulo importante do livro trata da terapia familiar sistêmica, segundo a qual é indispensável observar o todo e não as partes do sistema familiar, e com a qual Mourão teve contato aprofundado também na Bélgica. Lá fez parte da primeira turma da terapeuta de família Mony Elkaim.
Por fim, no terceiro capítulo, Mourão aborda alguns temas atuais no campo da psiquiatria, como a perda e o luto, a erotização precoce de crianças e as drogas. Boa parte dos textos do livro é oriunda de artigos publicados ao longo dos anos de carreira do autor na revista eletrônica Psychiatry On Line Brasil. “Mas muitas pessoas me pediam cópias impressas, então resolvi juntar tudo em um livro, acompanhado de uma introdução, onde resumo meu itinerário profissional”, detalha.
De fato, é na introdução onde melhor resume a essência da obra. “Uma parte de mim não acredita em pai-de-santo, em umbanda, em rezadeira, isso enquanto sou psiquiatra. Pois é uma ciência que tem suas referências. Mas, como sou brasileiro, nordestino, do Ceará, não posso desconhecer essa realidade. Eu tenho que saber que caminho com essas duas identidades. Uma não precisa destruir a outra”, expressa no texto.
Segundo ele, o livro destina-se a tanto aos profissionais quanto às pessoas que gostam do assunto, no sentido de “vislumbrar outros olhares, em vez de ficar preso unicamente à questão medicamentosa, à psicofarmacologia”, complementa na entrevista.
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